“Desde hoje, Portugal está à frente da Europa. Vós, os portugueses, não haveis cessado de ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade. Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos.”Carta de Victor Hugo a Brito Aranha, de 15 de julho de 1867. (1) |
A 27 de fevereiro de 1867, Barjona de Freitas, Ministro dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, apresenta, na Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, uma proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, que contempla a abolição da pena de morte para os crimes comuns. (2)
Retrato de Barjona de Freitas, de Columbano Bordalo Pinheiro, 1909. Assembleia da República. |
O Ministro enuncia como principal objetivo a reforma das prisões, “acomodando-as aos progressos da penalidade e assegurando-lhes as indispensáveis condições de capacidade, segurança e salubridade”. Entre as disposições da proposta, destaca-se a abolição da pena de morte nos crimes civis, invocando-se a “voz da humanidade e do sentimento”, “os ditames da ciência e as tendências da civilização”, mas também as estatísticas que demonstram a inutilidade daquela pena, abolida de facto desde 1846, sem que se verificasse qualquer aumento da criminalidade.
Defende, assim, a adequação da legislação à realidade, pois “se se não executa, se contra a sua execução se insurgiria o sentimento e a consciência pública”, não há razão para manter “essa antinomia entre as leis e os costumes”.
Também a pena a trabalhos públicos é suprimida, tendo por base a constatação da “esterilidade do trabalho forçado, que abatendo a dignidade do homem extingue nele a espontaneidade das faculdades individuais e nivela com o do escravo o seu trabalho”.
Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867. |
Sala das Sessões dos Pares do Reino, inaugurada em janeiro de 1867. Desenho sobre fotografia de Francisco Rocchini. |
No seu entendimento, a função da pena é corrigir o culpado e não vingá-lo:
“A pena de morte, decerto, que não corrige; o cadáver não se corrige. Todo o facto que não tiver por consequência necessária e imediata a correção moral do sujeito culpado, não pode denominar-se pena. Chamem-lhe castigo, satisfação social, vingança, o que quiserem, mas nunca pena. Corrigir, moralizar, regenerar, reabilitar para a vida social deve ser o fim supremo da penalidade. (…)”.
Exalta o pioneirismo de Portugal nesta questão, país que, antes de o primeiro Estado abolir a pena de morte – a Toscana em 1774 – a aboliu, na prática, em relação às mulheres, em 1772, data em que foi, pela última vez, executada uma mulher. Relativamente aos homens, recorda a última execução 21 anos antes, em 1846, na cidade de Lagos, considerando, assim, que a abolição “chegou à maioridade; está emancipada” e que, portanto, deve ser consignada na lei.
Durante o debate, apresentam-se algumas vozes dissonantes, nomeadamente dos dois Deputados que votam contra a proposta: Cunha Salgado, que acusa a Câmara de se deixar “arrastar por essa ideia mágica e sedutora da abolição da pena de morte”, e Belchior Garcês, que justifica a sua posição pelo atraso civilizacional de Portugal e pela desnecessidade de abolir na lei uma pena que na prática não se aplica.
Curiosamente, este último argumento da “abolição na prática” é utilizado em sentido contrário pelos defensores da “abolição na lei”, como os já citados Barjona de Freitas e Aires de Gouveia, que buscam a coerência entre a legislação e os costumes.
Outros parlamentares apresentam críticas à iniciativa, caso de Faria Barbosa que considera que as “leis tendem e muito a favorecer os criminosos”, em detrimento da segurança dos cidadãos, e de Faria Rego, que argumenta contra a abolição nos “crimes de assassínio, incendiário e moedeiro falso”, entendendo que “a pena é legítima quando a sociedade o exige e reclama, e ilegítima quando dela não precisa” e que Portugal não está “em estado de receber a lei”, quando “as nações mais adiantadas e mais moralizadas, a França, a Inglaterra, a Itália, a Bélgica que tantas vezes aqui se apresenta para modelo, ainda a não aboliram”.
Intervenções contrárias que não condicionam a aprovação da proposta por larga maioria na Câmara dos Deputados e também na Câmara dos Pares, na sessão de 26 de junho.
A carta de lei de 1 de julho de 1867, abolindo a pena de morte para crimes comuns, seria amplamente noticiada e aplaudida pela imprensa nacional e internacional.
No entanto, também nos jornais portugueses se registam algumas vozes críticas, caso do Distrito de Évora (3), que acusa o Governo de julgar “coroar um imaginário edifício” com a “inviolabilidade da vida”, quando “os alicerces do edifício são de dor, de miséria, e de fome do povo”, do Jornal de Notícias (4), afirmando que “não há forca no código que é uma aparência, mas há a fome, a falta de trabalho, o roubo e a prostituição como refúgios – o que é uma realidade”, e do Revolução de Setembro (5), que defende a legitimidade da pena de morte, uma vez que o homicida desrespeita em primeiro lugar a vida humana.
Entre as múltiplas reações favoráveis à lei aprovada, destaca-se a carta de Victor Hugo ao diretor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, publicada naquele jornal no dia 10 de julho de 1867:
“Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma tão grande história! (…)
Felicito o vosso Parlamento, os vossos filósofos. Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Disfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à Guerra! Ódio ao ódio! Vida à vida! A liberdade é uma cidade imensa da qual todos nós somos cidadãos. Aperto-vos a mão como um meu compatriota na humanidade, e saúdo o vosso generoso e eminente espírito.”
Retrato de Victor Hugo. “O Século”, 1 de junho de 1885, p. 1. |
(1) ARANHA, Brito – Factos e homens do meu tempo: memórias de um jornalista. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora, 1908. Tomo 2, p. 200.
(2) A pena de morte para os crimes políticos é abolida em Portugal em 1852, para os crimes civis em 1867 e para os crimes militares em 1911. Em 1916, durante a Grande Guerra, é resposta “em caso de guerra com nação estrangeira, em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro da guerra”. A abolição da pena de morte para todos os crimes só volta a ser consagrada na Constituição de 1976.
(3) Distrito de Évora, 27 de junho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.
(4) Jornal de Notícias, 3 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.
(5) Revolução de Setembro, 22 de junho e 6 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.
Imagem do separador: Pormenor do Palácio das Cortes (extinto Mosteiro de S. Bento), Caggiani, c. 1860. Arquivo Pitoresco, vol. 3, n.º 52, 1860, p. 405. Hemeroteca Municipal de Lisboa.Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867.