CONFERÊNCIA | Sistemas prisionais contemporâneos em Portugal | Modelos penais e reinserção social

Organização

Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas / Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Instituto Universitário de Lisboa. Centro de Investigação e Estudos em Sociologia

Coordenação e moderação

Maria João Vaz

Local e Data

Lisboa

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

19 de outubro 2021 | 14h30 – 18h00

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A última execução em Lisboa 1842 | The last execution in Lisbon 1842

Relato ilustrado por Ilustrações / Illustrations: Sandra Duarte

“Pelas dez horas e meia do dia 16 de [abril] de 1842, dirigiu-se para o Limoeiro, tangendo a campainha, a Irmandade da Misericórdia, levando à frente o painel que tinha num dos lados a imagem da Virgem, cobrindo com o manto os pecadores e a seus pés as grades de um cárcere, através das quais se divisava o rosto de um preso.

Do outro lado do painel via-se a imagem da Nossa Senhora da Piedade. Juntamente com os irmãos iam os condutores da tumba, conduzindo um deles doces e bebidas para oferecer ao condenado, e dois outros, cada um com uma alcofa, destinadas a recolher os donativos no trajeto para a forca, e que seriam empregados em missas por alma do condenado. Seguia-se um padre arvorando um crucifixo, ladeado por quatro acólitos com tochas acesas. Após caminhavam os oficiais de justiça, fechando o préstito uma força militar.

Chegado ao Limoeiro, todo este cortejo entra no edifício, desfilando em frente de Matos Lobo, que estava no oratório. Aproximam-se então o carrasco e o seu ajudante e recebem das mãos do irmão da Misericórdia a alva e a corda que viera da Relação, e cuja solidez fora já experimentada. Começa a toilette do condenado. Vestem-lhe a alva, põem-lhe ao pescoço o laço de corda e atam-lhe com o restante as mãos, passando-a em volta da cintura; descalçam-no e fazem-no sentar numa cadeira de espaldar e braços, com dois varais, em que dois condutores pegam, erguendo-o e conduzindo-o para a frente de um altar, previamente armado, onde é rezada uma missa por sua intenção. O prior de Marvão, tão pálido como o condenado, é que lhe assiste, exortando-o.

Finda a missa, organiza-se o préstito e põe-se em marcha. São 11 horas. O largo regurgita de espetadores e todas as janelas estão apinhadas. Rompe marcha um piquete de cavalaria e segue-se a campainha tocando compassadamente; depois as alcofas recolhendo esmolas, o painel e a Irmandade da Misericórdia, o sacerdote com o crucifixo, voltando-o para o condenado que vem após, sentado na sua cadeira e conduzido por dois forçados, cujas grilhetas soam nas pedras da calçada, vestindo calças de riscado azul, jaquetas brancas e suspensos nos braços os seus chapéus à caçadora. Atrás do condenado seguem o carrasco e o seu ajudante, hirtos nas suas sobrecasacas negras, debruadas de amarelos. Vêm depois os representantes da justiça, em seges de praça – um juiz e três escrivães – fechando o cortejo uma força de infantaria, a qual destacara várias praças que ladeavam todo o préstito.

O cortejo desce, parando um momento em frente do Aljube.

[O cortejo faz] nova paragem em frente da Madalena. Matos Lobo parece que vai já morto. No Largo do Pelourinho, abre os olhos e torna-os a cerrar, como se a luz do Sol lhos ferisse. Durante o trajeto da Rua do Arsenal ao Largo do Corpo Santo, a sua cabeça bamboleia como coisa inerte.

Ressoam nas torres as últimas badaladas do meio-dia quando o cortejo chega em frente da casa onde se cometeu o crime, junto ao Arco Grande, na Rua de S. Paulo.

A multidão ali é mais compacta e comprime-se, curiosa. Em cumprimento da sentença, o cortejo dá três voltas em torno do prédio e para em frente da entrada, ficando o condenado em face da porta.

O escrivão entra e assoma à sacada, e, impondo silêncio à multidão, lê a sentença.

Em seguida, o padre, tomando o mesmo lugar, faz uma breve alocução sobre o ato e lê a declaração escrita e assinada pelo réu, da confissão do seu crime, em que dizia que o tinha praticado sem cúmplices, movido apenas por uma cega paixão e sem ideia de roubo. Finda a leitura, o padre fez ainda umas pequenas observações e desce a tomar o seu lugar no préstito, que se põe em marcha, passando pelo Arco Pequeno, seguindo para o Conde Barão e entrando, por fim, no Cais do Tojo da Boavista.

É uma hora e um quarto. A forca ergue-se sinistra, rodeada por um cordão de soldados. Os irmãos da Misericórdia desligaram o condenado e levaram-no em braços até à escada fatal, onde o executor e o seu ajudante apoderam-se dele e o vão subindo quase em peso, parecendo puxar um cadáver. Enquanto um lhe ampara o corpo, o outro passa no gancho o baraço, subindo uma escada de mão.

Neste momento, deu-se um incidente singular. O prior de Marvão procura reconfortar o condenado, mas, subitamente, cai morto. Fulminara-o uma apoplexia. Eleva-se um grande clamor na multidão e o corpo do sacerdote é imediatamente retirado na cadeira onde viera o condenado.

No entanto, a execução prossegue. Um padre chamado Sales toma o lugar do prior. O rosto de Matos Lobo é tapado com o capuz da alva e o condenado, com o algoz escarrachado sobre ele, é precipitado no espaço. As pernas do verdugo, porém, resvalam, e ele, para não cair, segura-se à corda. Por momentos, veem-se os dois pendurados, um pelas mãos, outro pelo pescoço, debatendo-se na agonia da sufocação. Por fim, o carrasco, num derradeiro esforço, consegue firmar-se sobre
o padecente e completar a execução. Durou o suplício 15 minutos.

O corpo de Matos Lobo foi depois metido na tumba da Misericórdia, e, acompanhado por um padre e 20 soldados de cavalaria, conduzido para o cemitério dos Prazeres.

O corpo do prior de Marvão foi transportado por quatro galegos, obrigados por soldados, para sua casa, e de lá para a Igreja de Santiago, de onde saiu o funeral para o Alto de S. João. O padre Sales, que também caiu desfalecido, foi conduzido em braços, para uma casa próxima, e de lá seguiu, em sege, para a sua residência.”
Relato da imprensa da época, transcrito no Diário de Lisboa de 7 de março de 1922.

Portugal, protagonista da luta contra a pena de morte

Augusto Santos Silva

Ministro dos Negócios Estrangeiros

No nosso como na generalidade dos outros países abolicionistas, a abolição foi um processo e não um evento único. Já em 1852 havia sido revogada a pena capital para quaisquer delitos políticos; em 1867, estendeu–se a todos os crimes civis; em 1916, foi reposta para crimes de traição em cenário de guerra com país estrangeiro, eventualidade que a Constituição de 1933 manteve no essencial; até que, finalmente, a Constituição de 1976 terminou com qualquer exceção ou ambiguidade, estabelecendo cristalinamente no seu artigo 24.º: “1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte.”

A recusa da pena de morte, como a recusa de qualquer forma de tortura, assim como dos tratamentos e penas cruéis, degradantes e desumanos, é um dos valores éticos e um dos princípios políticos e jurídicos mais bem estabelecidos no Estado e na sociedade portuguesa. Nenhuma corrente de opinião o coloca minimamente em causa. Este consenso é um dos mais fortes pilares da afirmação coletiva como um país de genuína tradição humanista e do crédito internacional que, por isso, merece.

Mas vamos mais longe, e eis o que gostaria de pôr em relevo, neste dia, no quadro das minhas responsabilidades na condução da nossa política externa. Portugal tem feito do abolicionismo uma das traves mestras da sua diplomacia, intervindo ativamente nesse sentido em todas as instâncias internacionais, e no quadro mais geral da promoção dos direitos humanos.

Prosseguimos esta linha em três planos complementares.

Em primeiro lugar, através do nosso próprio exemplo. Somos parte de todos os instrumentos internacionais e regionais mais relevantes para a questão, e nomeadamente daqueles que desenvolvem o disposto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Submetemo-nos a todas as obrigações de cumprimento e avaliação deles decorrentes.

Em segundo lugar, através da ação nas organizações multilaterais. Na União Europeia, contamo-nos entre os Estados membros que mais insistem na defesa dos chamados critérios de Copenhaga, que incluem a abolição da pena de morte como uma das condições indispensáveis para a apresentação de qualquer candidatura de adesão. Somos “chefes de fila” da União no âmbito do Conselho da Europa para a luta contra a pena de morte; e foi durante a nossa presidência europeia de 2007 que se organizou, em Lisboa, a conferência internacional de que resultou a definição do 10 de Outubro como Dia Europeu e Mundial contra a Pena de Morte. Também foi nesse ano e nesse âmbito que se aprovou pela primeira vez, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a resolução apelando à moratória de aplicação da pena de morte nos países que ainda a mantêm nas respetivas legislações. Desde então, a resolução, bienal, tem sido regularmente aprovada. Portugal participa na ação de campanha pela abolição pura e simples, que se realiza todos os setembros à margem do segmento de alto nível da Assembleia Geral. A luta contra a pena de morte constitui uma das prioridades do nosso corrente mandato no Conselho dos Direitos Humanos. E temos, evidentemente, muito orgulho no facto de a ausência de pena de morte ser um dos requisitos de pertença à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa realizando tudo o que está ao nosso alcance para que ele seja integralmente respeitado, sem qualquer subterfúgio.

Em terceiro lugar, a agenda dos direitos humanos é um tópico sempre presente no nosso relacionamento bilateral. De um modo que nos é querido – e é, aliás, uma das razões da credibilidade de que gozamos, também neste domínio, na cena internacional. Não pretendemos ser donos da verdade, ou dispor de qualquer superioridade moral. A firmeza das nossas convicções no respeito pela inviolabilidade e a dignidade da vida humana vai de par com a consciência das circunstâncias e vicissitudes do processo histórico que a ele conduziu, e das incompletudes que ainda verificamos no cumprimento prático das suas consequências. Queremos ser parceiros e não mestres ou juízes dos demais. O que dizemos, a todos, são duas coisas muito simples. Dizemos que a pena de morte é um ato bárbaro, contrário à lógica da justiça (porque impede liminarmente a correção tempestiva de eventuais erros judiciários e a reabilitação dos culpados) e, como instrumento de dissuasão, ineficaz e até contraproducente. E dizemos que a nossa experiência, como povo e como Estado, é que a ausência de tratamentos e penas indignas nos tem tornado mais seguros, mais humanos, mais coesos.

E não é este um altíssimo valor, que justifica júbilo, orgulho e celebração? Claro que é. Com a responsabilidade inerente de contribuir para a sua disseminação em todo o mundo.

Carta de lei pela qual D. Luís sanciona o decreto das Cortes Gerais de 26 de junho de 1867 que aprova a reforma penal e das prisões, com abolição da pena de morte. 1867-06-26 a 1867-07-01. Portugal, Torre do Tombo, Leis e ordenações, Leis, mç. 31, n.º 64.

 DN, 01 DE JULHO DE 2017

ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE (1867)

 “Desde hoje, Portugal está à frente da Europa. Vós, os portugueses, não haveis cessado de ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade. Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos.”Carta de Victor Hugo a Brito Aranha, de 15 de julho de 1867. (1)

 

27 de fevereiro de 1867, Barjona de Freitas, Ministro dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, apresenta, na Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, uma proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, que contempla a abolição da pena de morte para os crimes comuns. (2)

 Retrato de Barjona de Freitas, de Columbano Bordalo Pinheiro, 1909. Assembleia da República.

O Ministro enuncia como principal objetivo a reforma das prisões, “acomodando-as aos progressos da penalidade e assegurando-lhes as indispensáveis condições de capacidade, segurança e salubridade”. Entre as disposições da proposta, destaca-se a abolição da pena de morte nos crimes civis, invocando-se a “voz da humanidade e do sentimento”, “os ditames da ciência e as tendências da civilização”, mas também as estatísticas que demonstram a inutilidade daquela pena, abolida de facto desde 1846, sem que se verificasse qualquer aumento da criminalidade.

Defende, assim, a adequação da legislação à realidade, pois “se se não executa, se contra a sua execução se insurgiria o sentimento e a consciência pública”, não há razão para manter “essa antinomia entre as leis e os costumes”.

Também a pena a trabalhos públicos é suprimida, tendo por base a constatação da “esterilidade do trabalho forçado, que abatendo a dignidade do homem extingue nele a espontaneidade das faculdades individuais e nivela com o do escravo o seu trabalho”.

Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867.

Na Câmara dos Deputados, o debate sobre a iniciativa tem lugar nos dias18 e 21 de junho de 1867, com a maioria dos Deputados a acolher favoravelmente a proposta para a abolição da pena de morte.

 Sala das Sessões dos Pares do Reino, inaugurada em janeiro de 1867. Desenho sobre fotografia de Francisco Rocchini.

O Deputado Santana e Vasconcelos exalta o feito, afirmando:
“Portugal podia estar hoje abatido e pequeno, mas na minha opinião, pelo simples facto de abolir a pena de morte, coloca-se à rente da civilização europeia, e é neste momento solene uma das primeiras nações do mundo.”Aires de Gouveia, Deputado que, em 1863, apresentara iniciativas para eliminar o ofício de carrasco e para abolir a pena capital, considera a condenação à morte “ilegítima”, “desnecessária”, “inútil” e “absurda” e defende a sua supressão para todos os crimes, incluindo os militares.

No seu entendimento, a função da pena é corrigir o culpado e não vingá-lo:

“A pena de morte, decerto, que não corrige; o cadáver não se corrige. Todo o facto que não tiver por consequência necessária e imediata a correção moral do sujeito culpado, não pode denominar-se pena. Chamem-lhe castigo, satisfação social, vingança, o que quiserem, mas nunca pena. Corrigir, moralizar, regenerar, reabilitar para a vida social deve ser o fim supremo da penalidade. (…)”.

Exalta o pioneirismo de Portugal nesta questão, país que, antes de o primeiro Estado abolir a pena de morte – a Toscana em 1774 – a aboliu, na prática, em relação às mulheres, em 1772, data em que foi, pela última vez, executada uma mulher. Relativamente aos homens, recorda a última execução 21 anos antes, em 1846, na cidade de Lagos, considerando, assim, que a abolição “chegou à maioridade; está emancipada” e que, portanto, deve ser consignada na lei.

Durante o debate, apresentam-se algumas vozes dissonantes, nomeadamente dos dois Deputados que votam contra a proposta: Cunha Salgado, que acusa a Câmara de se deixar “arrastar por essa ideia mágica e sedutora da abolição da pena de morte”, e Belchior Garcês, que justifica a sua posição pelo atraso civilizacional de Portugal e pela desnecessidade de abolir na lei uma pena que na prática não se aplica.

Curiosamente, este último argumento da “abolição na prática” é utilizado em sentido contrário pelos defensores da “abolição na lei”, como os já citados Barjona de Freitas e Aires de Gouveia, que buscam a coerência entre a legislação e os costumes.

Outros parlamentares apresentam críticas à iniciativa, caso de Faria Barbosa que considera que as “leis tendem e muito a favorecer os criminosos”, em detrimento da segurança dos cidadãos, e de Faria Rego, que argumenta contra a abolição nos “crimes de assassínio, incendiário e moedeiro falso”, entendendo que “a pena é legítima quando a sociedade o exige e reclama, e ilegítima quando dela não precisa” e que Portugal não está “em estado de receber a lei”, quando “as nações mais adiantadas e mais moralizadas, a França, a Inglaterra, a Itália, a Bélgica que tantas vezes aqui se apresenta para modelo, ainda a não aboliram”.

Intervenções contrárias que não condicionam a aprovação da proposta por larga maioria na Câmara dos Deputados e também na Câmara dos Pares, na sessão de 26 de junho.

A carta de lei de 1 de julho de 1867, abolindo a pena de morte para crimes comuns, seria amplamente noticiada e aplaudida pela imprensa nacional e internacional.

No entanto, também nos jornais portugueses se registam algumas vozes críticas, caso do Distrito de Évora (3), que acusa o Governo de julgar “coroar um imaginário edifício” com a “inviolabilidade da vida”, quando “os alicerces do edifício são de dor, de miséria, e de fome do povo”, do Jornal de Notícias (4), afirmando que “não há forca no código que é uma aparência, mas há a fome, a falta de trabalho, o roubo e a prostituição como refúgios – o que é uma realidade”, e do Revolução de Setembro (5), que defende a legitimidade da pena de morte, uma vez que o homicida desrespeita em primeiro lugar a vida humana.

Entre as múltiplas reações favoráveis à lei aprovada, destaca-se a carta de Victor Hugo ao diretor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, publicada naquele jornal no dia 10 de julho de 1867:

“Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma tão grande história! (…)

Felicito o vosso Parlamento, os vossos filósofos. Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Disfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à Guerra! Ódio ao ódio! Vida à vida! A liberdade é uma cidade imensa da qual todos nós somos cidadãos. Aperto-vos a mão como um meu compatriota na humanidade, e saúdo o vosso generoso e eminente espírito.”

Retrato de Victor Hugo. “O Século”, 1 de junho de 1885, p. 1.

(1) ARANHA, Brito – Factos e homens do meu tempo: memórias de um jornalista. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora, 1908. Tomo 2, p. 200.

(2) A pena de morte para os crimes políticos é abolida em Portugal em 1852, para os crimes civis em 1867 e para os crimes militares em 1911. Em 1916, durante a Grande Guerra, é resposta “em caso de guerra com nação estrangeira, em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro da guerra”. A abolição da pena de morte para todos os crimes só volta a ser consagrada na Constituição de 1976.

(3) Distrito de Évora, 27 de junho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

(4) Jornal de Notícias, 3 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

(5Revolução de Setembro, 22 de junho e 6 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

Imagem do separador: Pormenor do Palácio das Cortes (extinto Mosteiro de S. Bento), Caggiani, c. 1860. Arquivo Pitoresco, vol. 3, n.º 52, 1860, p. 405. Hemeroteca Municipal de Lisboa.Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867.

Pena de Morte: porque não falar dela nas escolas?

Entre as pessoas que se interessam por questões ligadas à educação para os Direitos Humanos e Cidadania a resposta que dou sobre a utilidade de estudar na escola o tema Pena de Morte (que SIM, deve ser tema prioritário) é muito minoritária.

Quando defendo que, por exemplo, na disciplina de História, de qualquer ciclo, esse tema devia ser mais abordado, já sei qual o tipo de reações que vou ter.

A mais comum é “não temos pena de morte em Portugal, para quê falar disso? Importante é falar de questões mais próximas.”

Ao que contraponho, precisamente por isso.

O risco de ressuscitar o tema é diminuto e, ao não falarmos disso, até parece que temos vergonha como Estado e como povo de lembrar algo de que até nos devíamos coletivamente orgulhar. 150 anos sem pena de morte.

Além disso, a reflexão sobre a pena de morte cai no domínio do tipo de raciocínio sobre o absurdo e sobre o limite: quem entenda e perceba, por sua própria reflexão, a inutilidade de matar por sanção um criminoso horrífico, vai ter mais abertura à tolerância noutros domínios, por absorção do tipo de raciocínio.

Por exemplo, vai pensar de outra forma sobre a tortura ou sobre o tratamento dos presos. E até sobre o racismo e a injustiça em geral.

Refletir sobre a pena de morte e sobre as razões porque Portugal é abolicionista é mesmo altamente formativo.

Muita gente me diz: “já há muitos alunos a favor da pena de morte. Falar disso vai agravar o problema.”

Penso o contrário: por não se falar disso é que o problema se agrava. E contamina outras reflexões dos alunos sobre direitos humanos.

Completam-se em 2017, 150 anos sobre a abolição da pena de morte em Portugal (para os crimes não militares). (…)

Nas escolas estamos a falar disso?

Ou, embrenhados no imediatismo das discussões mais próximas sobre Direitos Humanos e, aparentemente, mais interessantes na utilidade, da violência do namoro ou do racismo (ou outras) perdemos a noção de que a discussão de um tema cultural vasto (alegadamente distante) mas que até interessa aos alunos pode, por via indireta, mas eficaz, ajudar também aí, abrindo vias de reflexão até para o que é quotidiano e imediato.

Vitor Hugo foi um escritor que abordou genialmente e como pioneiro o tema. Da sua obra tira-se talvez uma conclusão forte: não é difícil ser contra a pena de morte para um inocente.

Difícil é entender porque se tem de ser contra mesmo para um culpado. E pensar sobre isso faz pensar sobre quase todas a vertentes dos Direitos Humanos. E sobre o modelo de sociedade e valores associados.

Além disso, os nossos alunos vivem num mundo global. E no mundo global há pena de morte, e muita….

Se nós não temos pena de morte no nosso território, ela ainda existe na Europa (Bielorrússia) e no resto do mundo as execuções estão a aumentar. E não se conta a China (aquele país com quem temos relações comerciais e empresariais tão estreitas…).

Pena de morte e Constituição – comemorações em risco de esquecimento nas escolas…

Completaram-se no passado dia 2 de Abril de 2016, 40 anos sobre aprovação da Constituição da República Portuguesa, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976.

Não sei quantas escolas previram no seu plano de atividades anual comemorar esse facto mas se não o fizeram foi pena.

No meu caso, nesse dia e nas suas redondezas, irei falar aos meus alunos desse tema (que, ainda para mais, faz parte do programa de História do 6º ano). E, não só a propósito do número redondo de anos, mas principalmente pelo conteúdo.

A Constituição, mesmo se alguns a discutem, ainda hoje, politicamente (atuação legítima e justa, que mostra uma Democracia, apesar de tudo, viva), tem, naquilo que é essencial, largo consenso dos Portugueses.

A sua tendência forte de garantia e defesa dos Direitos Humanos e a definição, nas suas normas, de um Estado de Direito Democrático fazem com que, aquilo que dela é discutido e até contestado, não seja, de forma nenhuma, aquilo que é mais essencial no consenso constitucional de 1976.

PODE SER ABORDADA DE MUITAS FORMAS NAS ESCOLAS E, NA VERDADE, O QUE É MAIS TRISTE É QUE NÃO SEJA.

Durante 20 anos, tenho percorrido centenas de escolas de todo o país, em sessões sobre temáticas relacionadas com Direitos Humanos, e, sempre que lembrava aos alunos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é lei em Portugal por causa do artigo 16º, nº2 da CRP, pedia para me encontrarem na Biblioteca uma edição atualizada da dita Constituição: em (muito) mais de 50% das escolas, o que aparecia era uma edição desatualizada ou nenhuma …. Numa das escolas (velha escola secundária), nos meados de 1990, ainda me trouxeram uma edição da de 1933….

Uma boa forma de o Estado comemorar os 40 anos era uma boa edição escolar da Constituição, com comentários pedagógicos, para vários níveis etários, por bons especialistas.

E não precisava de gastar muito dinheiro. Bastava colocar num qualquer site público….

Já houve edições do género por editores comerciais e há alguns sites com informação mais focada para crianças mas falta estratégia para isso ser mais eficaz, apesar do calor de alguns debates parlamentares passados e algumas iniciativas a aguardar sequência descentralizada.

No Brasil, até há versões para crianças em Banda desenhada.

1976 – ANO DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE. MAS NÃO FOI HÁ 150 ANOS?

Mas, no dia 2 de Abril, passa também outro aniversário redondo, muito importante, e que vai ter sequência em 2017, noutra efeméride que deve ser indispensável, em qualquer plano de atividades de escola que se preze do país que somos…

Execução decapitaçãoA Constituição de 1976 recolocou Portugal no grupo dos países plenamente abolicionistas da pena de Morte. Se virem a maioria das listas sobre abolição da pena de morte verão que Portugal, ao contrário do que diz a voz pública, só se tornou totalmente abolicionista em 1976.

O tema é complexo de explicar todo ele e também nestes detalhes de datas. Muitas vezes, aponta-se a data de 1867 e gabamo-nos, com algum nacionalismo limitado, de termos sido o 1º país do mundo a abolir a pena capital.

Não só a questão não é um campeonato como, se fosse, Portugal, mesmo pioneiro, não seria historicamente o primeiro, sendo precedido pelo Japão (ainda na Idade Média, embora tenha reintroduzido e mantenha execuções ainda hoje), Toscânia (hoje desaparecido como País, já que é parte da Itália), Venezuela ou San Marino, por exemplo.

Mas a verdade é que sermos uma sociedade abolicionista é algo que deve suscitar reflexão nas escolas mesmo que não sejamos “os campeões”. Na União Europeia fomos claramente os primeiros e  na Europa, como continente, ainda há um país que pratica execuções (Bielorrússia).

Em Portugal, em 1911, tinha havido uma decisão do novo poder republicano de abolição total da pena mas, em 1916, com a entrada na 1ª Guerra Mundial, foi reintroduzida para os crimes militares no teatro de guerra e assim se manteve até 1976.

Em 1917, chegou a acontecer uma execução na Flandres, de que foi vítima um soldado do corpo expedicionário português. Antes de 1911, e desde 1867, Portugal manteve a pena de Morte para os crimes militares, embora nunca tenha sido aplicada (e quando foi tentado, isso tenha gerado grande clamor público).

Mas, para os crimes não cometidos por militares (a óbvia maioria) a pena foi realmente abolida em 1867 (o documento que resultou nessa decisão é tão significativo que está hoje classificado com a marca do património europeu), o que faz com que, em 2017, passem 150 anos sobre a abolição efetiva da pena de morte em Portugal, facto central da nossa História e que as escolas devem comemorar.

Muitos me dirão: comemorar isso é “lembrar coisas que não interessa lembrar; já que não há, para quê falar disso?”.

Não posso concordar: realmente há muitos estudantes que, questionados sobre o problema, se dizem favoráveis mas isso não deve servir de pretexto para ignorar o assunto mas, sim, para debater, esclarecer e aproveitar o debate para falar de Direitos Humanos.

A atitude de não falar do tema pode ser consoladora para os que acham que, evitá-lo, impede manifestações mais públicas da vontade de alguns de voltar atrás e esquecer essa tradição centenária portuguesa (tão antiga que a última mulher executada o terá sido em 1777, isto é, há 240 anos, em 2017, outra data que mereceria comemoração).

E não se negue a utilidade de estudar o tema, já que tem contiguidade a outros muito atuais e até pelo seu valor próprio como reflexão educativa.

Por essa ordem de ideias negativa, mas valia nem estudar História (ideia que alguns políticos teriam por tentadora).

Sendo um facto histórico em Portugal, a abolição da pena de morte ainda é um problema em muitos países do mundo, alguns deles países com quem temos relações estreitas (China) e até em Democracias (Estados Unidos, Japão ou Índia, por exemplo).

E estamos a educar os nossos alunos para viverem neste mundo ou num mundo em que os assuntos desagradáveis são afastados por o serem?

Por isso, esperemos que, em 2017, haja no máximo de escolas (e quem sabe também por iniciativa do Ministério da Educação, embora a autonomia das escolas valha mais que ficar à espera disso) comemorações, com atividades preparadas e escolhidas pelos alunos, sobre esse facto histórico em que, mesmo não tendo sido os primeiros, devemos como comunidade ter muita satisfação: há 100 anos que o nosso Estado não executa nenhuma condenação à morte e há 150 anos que, no território administrado por Portugal, não há qualquer condenação ou execução.

Por aqui, no ComRegras, prometemos divulgar, apoiar e até ajudar a realizar, dentro das nossas possibilidades, até porque, o objetivo de uma escola com paz e sem violência passa principalmente por ter alunos que reflitam com profundidade sobre a sua humanidade e sobre direitos.

Por isso essa comemoração será um excelente pretexto pedagógico.

Texto de Luís Braga, publicado em 1 de março de

Correspondência trocada entre Vitor Hugo, Eduardo Coelho e Brito Aranha

Entre os meses de junho e julho de 1867, a propósito da abolição da pena de morte, Victor Hugo trocou correspondência com dois jornalistas portugueses, designadamente, Eduardo Coelho e Pedro Brito de Aranha.

Correspondência trocada entre Victor Hugo e Edurado Coelho

Carta de Victor Hugo ao jornalista Eduardo Coelho publicada no Diário de Notícias de 10 de Julho de 1867.

Está pois a pena de morte abolida n’esse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande historia! Penhora-me a recordação da honra que me cabe n’essa victoria ilustre.

Humilde operario do progresso, cada novo passo que elle avança me faz pulsar o coração.

Este é sublime. Abolir a morte legal deixando á morte divina todo o seu direito, todo o seu mysterio é um progresso augusto entre todos.

Felicito o vosso parlamento, os vossos pensadores, os vossos escriptores e os vossos philosophos!

Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo á Europa. Disfructae de antemão essa imensa gloria. Morte á morte! Guerra á guerra! Odio ao odio. Viva a vida! A liberdade é uma cidade imensa, da qual todos somos cidadãos.

Aperto-vos a mão como a meu compatriota na humanidade.

Victor Hugo.