A última execução em Lisboa 1842 | The last execution in Lisbon 1842

Relato ilustrado por Ilustrações / Illustrations: Sandra Duarte

“Pelas dez horas e meia do dia 16 de [abril] de 1842, dirigiu-se para o Limoeiro, tangendo a campainha, a Irmandade da Misericórdia, levando à frente o painel que tinha num dos lados a imagem da Virgem, cobrindo com o manto os pecadores e a seus pés as grades de um cárcere, através das quais se divisava o rosto de um preso.

Do outro lado do painel via-se a imagem da Nossa Senhora da Piedade. Juntamente com os irmãos iam os condutores da tumba, conduzindo um deles doces e bebidas para oferecer ao condenado, e dois outros, cada um com uma alcofa, destinadas a recolher os donativos no trajeto para a forca, e que seriam empregados em missas por alma do condenado. Seguia-se um padre arvorando um crucifixo, ladeado por quatro acólitos com tochas acesas. Após caminhavam os oficiais de justiça, fechando o préstito uma força militar.

Chegado ao Limoeiro, todo este cortejo entra no edifício, desfilando em frente de Matos Lobo, que estava no oratório. Aproximam-se então o carrasco e o seu ajudante e recebem das mãos do irmão da Misericórdia a alva e a corda que viera da Relação, e cuja solidez fora já experimentada. Começa a toilette do condenado. Vestem-lhe a alva, põem-lhe ao pescoço o laço de corda e atam-lhe com o restante as mãos, passando-a em volta da cintura; descalçam-no e fazem-no sentar numa cadeira de espaldar e braços, com dois varais, em que dois condutores pegam, erguendo-o e conduzindo-o para a frente de um altar, previamente armado, onde é rezada uma missa por sua intenção. O prior de Marvão, tão pálido como o condenado, é que lhe assiste, exortando-o.

Finda a missa, organiza-se o préstito e põe-se em marcha. São 11 horas. O largo regurgita de espetadores e todas as janelas estão apinhadas. Rompe marcha um piquete de cavalaria e segue-se a campainha tocando compassadamente; depois as alcofas recolhendo esmolas, o painel e a Irmandade da Misericórdia, o sacerdote com o crucifixo, voltando-o para o condenado que vem após, sentado na sua cadeira e conduzido por dois forçados, cujas grilhetas soam nas pedras da calçada, vestindo calças de riscado azul, jaquetas brancas e suspensos nos braços os seus chapéus à caçadora. Atrás do condenado seguem o carrasco e o seu ajudante, hirtos nas suas sobrecasacas negras, debruadas de amarelos. Vêm depois os representantes da justiça, em seges de praça – um juiz e três escrivães – fechando o cortejo uma força de infantaria, a qual destacara várias praças que ladeavam todo o préstito.

O cortejo desce, parando um momento em frente do Aljube.

[O cortejo faz] nova paragem em frente da Madalena. Matos Lobo parece que vai já morto. No Largo do Pelourinho, abre os olhos e torna-os a cerrar, como se a luz do Sol lhos ferisse. Durante o trajeto da Rua do Arsenal ao Largo do Corpo Santo, a sua cabeça bamboleia como coisa inerte.

Ressoam nas torres as últimas badaladas do meio-dia quando o cortejo chega em frente da casa onde se cometeu o crime, junto ao Arco Grande, na Rua de S. Paulo.

A multidão ali é mais compacta e comprime-se, curiosa. Em cumprimento da sentença, o cortejo dá três voltas em torno do prédio e para em frente da entrada, ficando o condenado em face da porta.

O escrivão entra e assoma à sacada, e, impondo silêncio à multidão, lê a sentença.

Em seguida, o padre, tomando o mesmo lugar, faz uma breve alocução sobre o ato e lê a declaração escrita e assinada pelo réu, da confissão do seu crime, em que dizia que o tinha praticado sem cúmplices, movido apenas por uma cega paixão e sem ideia de roubo. Finda a leitura, o padre fez ainda umas pequenas observações e desce a tomar o seu lugar no préstito, que se põe em marcha, passando pelo Arco Pequeno, seguindo para o Conde Barão e entrando, por fim, no Cais do Tojo da Boavista.

É uma hora e um quarto. A forca ergue-se sinistra, rodeada por um cordão de soldados. Os irmãos da Misericórdia desligaram o condenado e levaram-no em braços até à escada fatal, onde o executor e o seu ajudante apoderam-se dele e o vão subindo quase em peso, parecendo puxar um cadáver. Enquanto um lhe ampara o corpo, o outro passa no gancho o baraço, subindo uma escada de mão.

Neste momento, deu-se um incidente singular. O prior de Marvão procura reconfortar o condenado, mas, subitamente, cai morto. Fulminara-o uma apoplexia. Eleva-se um grande clamor na multidão e o corpo do sacerdote é imediatamente retirado na cadeira onde viera o condenado.

No entanto, a execução prossegue. Um padre chamado Sales toma o lugar do prior. O rosto de Matos Lobo é tapado com o capuz da alva e o condenado, com o algoz escarrachado sobre ele, é precipitado no espaço. As pernas do verdugo, porém, resvalam, e ele, para não cair, segura-se à corda. Por momentos, veem-se os dois pendurados, um pelas mãos, outro pelo pescoço, debatendo-se na agonia da sufocação. Por fim, o carrasco, num derradeiro esforço, consegue firmar-se sobre
o padecente e completar a execução. Durou o suplício 15 minutos.

O corpo de Matos Lobo foi depois metido na tumba da Misericórdia, e, acompanhado por um padre e 20 soldados de cavalaria, conduzido para o cemitério dos Prazeres.

O corpo do prior de Marvão foi transportado por quatro galegos, obrigados por soldados, para sua casa, e de lá para a Igreja de Santiago, de onde saiu o funeral para o Alto de S. João. O padre Sales, que também caiu desfalecido, foi conduzido em braços, para uma casa próxima, e de lá seguiu, em sege, para a sua residência.”
Relato da imprensa da época, transcrito no Diário de Lisboa de 7 de março de 1922.