Portugal, protagonista da luta contra a pena de morte

Augusto Santos Silva

Ministro dos Negócios Estrangeiros

No nosso como na generalidade dos outros países abolicionistas, a abolição foi um processo e não um evento único. Já em 1852 havia sido revogada a pena capital para quaisquer delitos políticos; em 1867, estendeu–se a todos os crimes civis; em 1916, foi reposta para crimes de traição em cenário de guerra com país estrangeiro, eventualidade que a Constituição de 1933 manteve no essencial; até que, finalmente, a Constituição de 1976 terminou com qualquer exceção ou ambiguidade, estabelecendo cristalinamente no seu artigo 24.º: “1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte.”

A recusa da pena de morte, como a recusa de qualquer forma de tortura, assim como dos tratamentos e penas cruéis, degradantes e desumanos, é um dos valores éticos e um dos princípios políticos e jurídicos mais bem estabelecidos no Estado e na sociedade portuguesa. Nenhuma corrente de opinião o coloca minimamente em causa. Este consenso é um dos mais fortes pilares da afirmação coletiva como um país de genuína tradição humanista e do crédito internacional que, por isso, merece.

Mas vamos mais longe, e eis o que gostaria de pôr em relevo, neste dia, no quadro das minhas responsabilidades na condução da nossa política externa. Portugal tem feito do abolicionismo uma das traves mestras da sua diplomacia, intervindo ativamente nesse sentido em todas as instâncias internacionais, e no quadro mais geral da promoção dos direitos humanos.

Prosseguimos esta linha em três planos complementares.

Em primeiro lugar, através do nosso próprio exemplo. Somos parte de todos os instrumentos internacionais e regionais mais relevantes para a questão, e nomeadamente daqueles que desenvolvem o disposto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Submetemo-nos a todas as obrigações de cumprimento e avaliação deles decorrentes.

Em segundo lugar, através da ação nas organizações multilaterais. Na União Europeia, contamo-nos entre os Estados membros que mais insistem na defesa dos chamados critérios de Copenhaga, que incluem a abolição da pena de morte como uma das condições indispensáveis para a apresentação de qualquer candidatura de adesão. Somos “chefes de fila” da União no âmbito do Conselho da Europa para a luta contra a pena de morte; e foi durante a nossa presidência europeia de 2007 que se organizou, em Lisboa, a conferência internacional de que resultou a definição do 10 de Outubro como Dia Europeu e Mundial contra a Pena de Morte. Também foi nesse ano e nesse âmbito que se aprovou pela primeira vez, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a resolução apelando à moratória de aplicação da pena de morte nos países que ainda a mantêm nas respetivas legislações. Desde então, a resolução, bienal, tem sido regularmente aprovada. Portugal participa na ação de campanha pela abolição pura e simples, que se realiza todos os setembros à margem do segmento de alto nível da Assembleia Geral. A luta contra a pena de morte constitui uma das prioridades do nosso corrente mandato no Conselho dos Direitos Humanos. E temos, evidentemente, muito orgulho no facto de a ausência de pena de morte ser um dos requisitos de pertença à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa realizando tudo o que está ao nosso alcance para que ele seja integralmente respeitado, sem qualquer subterfúgio.

Em terceiro lugar, a agenda dos direitos humanos é um tópico sempre presente no nosso relacionamento bilateral. De um modo que nos é querido – e é, aliás, uma das razões da credibilidade de que gozamos, também neste domínio, na cena internacional. Não pretendemos ser donos da verdade, ou dispor de qualquer superioridade moral. A firmeza das nossas convicções no respeito pela inviolabilidade e a dignidade da vida humana vai de par com a consciência das circunstâncias e vicissitudes do processo histórico que a ele conduziu, e das incompletudes que ainda verificamos no cumprimento prático das suas consequências. Queremos ser parceiros e não mestres ou juízes dos demais. O que dizemos, a todos, são duas coisas muito simples. Dizemos que a pena de morte é um ato bárbaro, contrário à lógica da justiça (porque impede liminarmente a correção tempestiva de eventuais erros judiciários e a reabilitação dos culpados) e, como instrumento de dissuasão, ineficaz e até contraproducente. E dizemos que a nossa experiência, como povo e como Estado, é que a ausência de tratamentos e penas indignas nos tem tornado mais seguros, mais humanos, mais coesos.

E não é este um altíssimo valor, que justifica júbilo, orgulho e celebração? Claro que é. Com a responsabilidade inerente de contribuir para a sua disseminação em todo o mundo.

Carta de lei pela qual D. Luís sanciona o decreto das Cortes Gerais de 26 de junho de 1867 que aprova a reforma penal e das prisões, com abolição da pena de morte. 1867-06-26 a 1867-07-01. Portugal, Torre do Tombo, Leis e ordenações, Leis, mç. 31, n.º 64.

 DN, 01 DE JULHO DE 2017

ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE (1867)

 “Desde hoje, Portugal está à frente da Europa. Vós, os portugueses, não haveis cessado de ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade. Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos.”Carta de Victor Hugo a Brito Aranha, de 15 de julho de 1867. (1)

 

27 de fevereiro de 1867, Barjona de Freitas, Ministro dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, apresenta, na Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, uma proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, que contempla a abolição da pena de morte para os crimes comuns. (2)

 Retrato de Barjona de Freitas, de Columbano Bordalo Pinheiro, 1909. Assembleia da República.

O Ministro enuncia como principal objetivo a reforma das prisões, “acomodando-as aos progressos da penalidade e assegurando-lhes as indispensáveis condições de capacidade, segurança e salubridade”. Entre as disposições da proposta, destaca-se a abolição da pena de morte nos crimes civis, invocando-se a “voz da humanidade e do sentimento”, “os ditames da ciência e as tendências da civilização”, mas também as estatísticas que demonstram a inutilidade daquela pena, abolida de facto desde 1846, sem que se verificasse qualquer aumento da criminalidade.

Defende, assim, a adequação da legislação à realidade, pois “se se não executa, se contra a sua execução se insurgiria o sentimento e a consciência pública”, não há razão para manter “essa antinomia entre as leis e os costumes”.

Também a pena a trabalhos públicos é suprimida, tendo por base a constatação da “esterilidade do trabalho forçado, que abatendo a dignidade do homem extingue nele a espontaneidade das faculdades individuais e nivela com o do escravo o seu trabalho”.

Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867.

Na Câmara dos Deputados, o debate sobre a iniciativa tem lugar nos dias18 e 21 de junho de 1867, com a maioria dos Deputados a acolher favoravelmente a proposta para a abolição da pena de morte.

 Sala das Sessões dos Pares do Reino, inaugurada em janeiro de 1867. Desenho sobre fotografia de Francisco Rocchini.

O Deputado Santana e Vasconcelos exalta o feito, afirmando:
“Portugal podia estar hoje abatido e pequeno, mas na minha opinião, pelo simples facto de abolir a pena de morte, coloca-se à rente da civilização europeia, e é neste momento solene uma das primeiras nações do mundo.”Aires de Gouveia, Deputado que, em 1863, apresentara iniciativas para eliminar o ofício de carrasco e para abolir a pena capital, considera a condenação à morte “ilegítima”, “desnecessária”, “inútil” e “absurda” e defende a sua supressão para todos os crimes, incluindo os militares.

No seu entendimento, a função da pena é corrigir o culpado e não vingá-lo:

“A pena de morte, decerto, que não corrige; o cadáver não se corrige. Todo o facto que não tiver por consequência necessária e imediata a correção moral do sujeito culpado, não pode denominar-se pena. Chamem-lhe castigo, satisfação social, vingança, o que quiserem, mas nunca pena. Corrigir, moralizar, regenerar, reabilitar para a vida social deve ser o fim supremo da penalidade. (…)”.

Exalta o pioneirismo de Portugal nesta questão, país que, antes de o primeiro Estado abolir a pena de morte – a Toscana em 1774 – a aboliu, na prática, em relação às mulheres, em 1772, data em que foi, pela última vez, executada uma mulher. Relativamente aos homens, recorda a última execução 21 anos antes, em 1846, na cidade de Lagos, considerando, assim, que a abolição “chegou à maioridade; está emancipada” e que, portanto, deve ser consignada na lei.

Durante o debate, apresentam-se algumas vozes dissonantes, nomeadamente dos dois Deputados que votam contra a proposta: Cunha Salgado, que acusa a Câmara de se deixar “arrastar por essa ideia mágica e sedutora da abolição da pena de morte”, e Belchior Garcês, que justifica a sua posição pelo atraso civilizacional de Portugal e pela desnecessidade de abolir na lei uma pena que na prática não se aplica.

Curiosamente, este último argumento da “abolição na prática” é utilizado em sentido contrário pelos defensores da “abolição na lei”, como os já citados Barjona de Freitas e Aires de Gouveia, que buscam a coerência entre a legislação e os costumes.

Outros parlamentares apresentam críticas à iniciativa, caso de Faria Barbosa que considera que as “leis tendem e muito a favorecer os criminosos”, em detrimento da segurança dos cidadãos, e de Faria Rego, que argumenta contra a abolição nos “crimes de assassínio, incendiário e moedeiro falso”, entendendo que “a pena é legítima quando a sociedade o exige e reclama, e ilegítima quando dela não precisa” e que Portugal não está “em estado de receber a lei”, quando “as nações mais adiantadas e mais moralizadas, a França, a Inglaterra, a Itália, a Bélgica que tantas vezes aqui se apresenta para modelo, ainda a não aboliram”.

Intervenções contrárias que não condicionam a aprovação da proposta por larga maioria na Câmara dos Deputados e também na Câmara dos Pares, na sessão de 26 de junho.

A carta de lei de 1 de julho de 1867, abolindo a pena de morte para crimes comuns, seria amplamente noticiada e aplaudida pela imprensa nacional e internacional.

No entanto, também nos jornais portugueses se registam algumas vozes críticas, caso do Distrito de Évora (3), que acusa o Governo de julgar “coroar um imaginário edifício” com a “inviolabilidade da vida”, quando “os alicerces do edifício são de dor, de miséria, e de fome do povo”, do Jornal de Notícias (4), afirmando que “não há forca no código que é uma aparência, mas há a fome, a falta de trabalho, o roubo e a prostituição como refúgios – o que é uma realidade”, e do Revolução de Setembro (5), que defende a legitimidade da pena de morte, uma vez que o homicida desrespeita em primeiro lugar a vida humana.

Entre as múltiplas reações favoráveis à lei aprovada, destaca-se a carta de Victor Hugo ao diretor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, publicada naquele jornal no dia 10 de julho de 1867:

“Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma tão grande história! (…)

Felicito o vosso Parlamento, os vossos filósofos. Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Disfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à Guerra! Ódio ao ódio! Vida à vida! A liberdade é uma cidade imensa da qual todos nós somos cidadãos. Aperto-vos a mão como um meu compatriota na humanidade, e saúdo o vosso generoso e eminente espírito.”

Retrato de Victor Hugo. “O Século”, 1 de junho de 1885, p. 1.

(1) ARANHA, Brito – Factos e homens do meu tempo: memórias de um jornalista. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora, 1908. Tomo 2, p. 200.

(2) A pena de morte para os crimes políticos é abolida em Portugal em 1852, para os crimes civis em 1867 e para os crimes militares em 1911. Em 1916, durante a Grande Guerra, é resposta “em caso de guerra com nação estrangeira, em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro da guerra”. A abolição da pena de morte para todos os crimes só volta a ser consagrada na Constituição de 1976.

(3) Distrito de Évora, 27 de junho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

(4) Jornal de Notícias, 3 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

(5Revolução de Setembro, 22 de junho e 6 de julho de 1867. Biblioteca Nacional de Portugal.

Imagem do separador: Pormenor do Palácio das Cortes (extinto Mosteiro de S. Bento), Caggiani, c. 1860. Arquivo Pitoresco, vol. 3, n.º 52, 1860, p. 405. Hemeroteca Municipal de Lisboa.Proposta de lei sobre a reforma penal das prisões, 1867.